Justiça proíbe punição a médicos que divulgam suas pós-graduações

Decisão considera ilegal resolução do CFM que proíbe médicos de informarem suas pós-graduações a pacientes

Uma decisão da Justiça Federal de Brasília trouxe alívio a um grupo de médicos que estava proibido de divulgar suas especializações obtidas em cursos de pós-graduação lato sensu credenciados pelo Ministério da Educação (MEC). A decisão da juíza Adverci Rates Mendes de Abreu afirma que restringir os profissionais de dar publicidade a essas especializações, através de Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), “não encontra amparo no ordenamento jurídico”.

“A decisão da Justiça Federal reconhece que a ação do Conselho contraria princípios constitucionais e a lei federal que rege o exercício legal da Medicina e garante aos associados que integram a 6ª Ação Civil Pública o direito de dar publicidade às suas especializações sem sofrer qualquer retaliação por parte do CFM”, afirma o advogado da Associação Brasileira de Médicos com Expertise em Pós-Graduação (Abramepo), Bruno Reis de Figueiredo, que representa os médicos na ação.

Entenda a disputa


Resoluções do CFM proíbem os médicos de informar aos pacientes as especializações que fizeram em entidades credenciadas pelo MEC. O Conselho só autoriza a divulgação de especialidades obtidas por meio da Residência Médica ou por meio de provas de títulos. O médico que faz cursos de pós-graduação organizados por sociedades privadas vinculadas à Associação Médica Brasileira (AMB) tem o acesso facilitado à prova.

“É uma resolução ilegal que dá a uma entidade privada e não ao MEC, a maior autoridade em educação do país, o poder de definir quem pode ou não ser especialista. Essa proibição tem o claro objetivo de promover uma reserva de mercado e causa uma série de prejuízos tanto aos usuários do SUS, que sofrem com a falta de especialistas, quanto usuários de planos de saúde, que pagam cada vez mais caro por causa do restrito número de especialistas”, afirma o presidente da Abramepo, Eduardo Costa Teixeira.

Direitos constitucionais


Na decisão, a magistrada afirma que as resoluções do CFM contrariam o art. 5º, XIII, da Constituição Federal, que estabelece a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão. “Também a Carta Magna aponta o Trabalho e a Educação como direito social de todos cujo o Estado tem o dever de promover visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 6º c/c art. 205 da CF/88). Assim, a questão apresentada estabelece uma ligação estreita com a garantia de direitos constitucionais que asseguram o exercício do trabalho, em particular da Medicina”, diz trecho da decisão.

O que diz a lei que rege o exercício da Medicina


A Lei federal nº 3.268/57 dispõe, em seu artigo 17, que os médicos poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no MEC e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina.

“O absurdo dessas resoluções do CFM é ter cursos de pós-graduação vinculados ao MEC de universidade federais, de institutos e hospitais de competência técnica incontestáveis, e com carga horária e conteúdo similar ao dessas residências médicas ou mesmo dos cursos vendidos pelas entidades privadas ligadas à AMB, que não garantem ao médico o direito de ter o título de especialista.Essa distorção precisa ser revista com uma ação mais contundente do MEC para definir regras para o setor de pós-graduação médica porque ano a ano o número de vagas de residência cai e o Brasil sofre com a baixa disponibilidade de especialistas”, afirma o presidente da Abramepo.

A juíza reafirma que cabe ao MEC, “e não aos conselhos Federal ou regionais de Medicina, estabelecer critérios para a validade dos cursos de pós-graduação lato sensu, o qual deverá aferir se foram cumpridas, estritamente, as grades curriculares mínimas, previamente estabelecidas, para o fim de aferir a capacidade técnica do pretendente ao exercício da profissão de médico. Exsurge daí que, ao exercer o seu poder de polícia, o Conselho Federal de Medicina não pode inovar para fins de criar exigências ao arrepio da lei, em total dissonância com os valores da segurança jurídica e da certeza do direito”, afirma na decisão.

A elitização das especialidades médicas e o apartheid da saúde no Brasil

O Brasil tem 546 mil médicos em atuação, número proporcionalmente grande, que representa 2,56 médicos para cada grupo de mil habitantes. O índice é praticamente igual aos dos Estados Unidos (2,6) e maior que o Japão (2,55). Ainda assim, um dos problemas mais graves enfrentados pelos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) é a falta de especialistas.

Nas regiões mais distantes das grandes metrópoles, a espera por uma consulta com uma especialidade pode durar vários anos. A situação assume contornos dramáticos que levam o poder público a pagar salários de até R$ 135 mil para tentar atrair profissionais para cidades da região Norte, para citar apenas um exemplo divulgado pela imprensa.

Dados da Demografia Médica 2023 confirmam esse drama: 56,1% dos médicos residentes estavam na região Sudeste, um terço deles (33,3%) em São Paulo. Enquanto isso, as regiões Centro-Oeste (7,5%) e Norte (3,6%) têm as menores proporções de residentes do Brasil. Juntos, os estados de Roraima e Amapá tinham, em 2021, apenas 100 residentes. A desigualdade na distribuição dessas vagas aprofunda o abismo social no Brasil.

Os grandes entraves ao aumento do número de especialistas no Brasil são a insuficiente quantidade de vagas de residência médica disponibilizadas; a má distribuição dessas vagas pelo Brasil e a falta de uma política do MEC para a pós-graduação na área médica.

O mesmo estudo mostrou que o número de graduados que iniciam a residência médica vem caindo ano a ano: entre 2018 e 2021 essa queda chegou a 14,8%. A defasagem entre formados e as vagas referentes às especialidades de acesso direto é ainda maior: em 2018 o deficit era de 3.866 e saltou para 11.770 em 2021, um aumento de 204%.

Enquanto isso acontece, uma norma do Conselho Federal de Medicina (CFM) impede milhares de médicos especializados em cursos de pós-graduação oferecidos por universidades federais e até por instituições médicas renomadas de divulgar suas especializações.

Segundo a Lei Federal 3.268, os médicos com diplomas e títulos registrados no MEC e com registro nos Conselhos Regionais de Medicina (CRM) estão habilitados a exercer a medicina em qualquer uma das suas especialidades. Mas uma resolução do CFM criou um modelo privado com poderes para definir os destinos das especialidades médicas.

Diferentemente de todas as demais profissões, inclusive da área de saúde, as pós-graduações credenciadas pelo MEC não conferem ao médico o título de especialista. Para apresentar a sua especialidade, o profissional precisa cursar a residência ou fazer algum dos cursos de pósgraduação credenciados por sociedades privadas de medicina vinculadas à Associação Médica Brasileira (AMB). Ou seja, não é o órgão máximo da Educação no Brasil quem diz quais cursos podem conferir o título de especialistas a médicos, mas uma entidade privada.

É preciso uma ação contundente do MEC para democratizar o acesso à especialização médica e tirar das mãos de entidades particulares o poder de definir quem pode ou não ser especialista. O órgão máximo deve criar uma comissão para estabelecer normas e critérios rigorosos para os cursos de formação de especialistas que são oferecidos no Brasil.

Enquanto isso não for feito, veremos esse abismo social aumentar ainda mais: de um lado, teremos milhões de brasileiros sem acesso a atendimentos em especialidades como psiquiatria, geriatria, neurologia, dentre outras, enquanto, do outro lado, entidades privadas elitizam ainda mais a medicina especializada e a restringem a uma parcela privilegiada que pode pagar caro por convênios e consultas particulares.

*Eduardo Costa Teixeira é professor titular da Escola de Medicina e Cirurgia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e presidente da Associação Brasileira de Médicos Com Expertise em Pós-Graduação (Abramepo)

Confira o material disponível no portal Estadão pelo pdf ou pelo link: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-elitizacao-das-especialidades-medicas-e-o-apartheid-da-saude-no-brasil/