Governo do Piauí nega remédios a pacientes com receita

Medida cerceia o direito à saúde da população e expõe pacientes a risco, contrariando a Constituição e pareceres do CFM e CRM do Piauí

Em uma decisão ilegal, a Diretoria de Unidade de Assistência Farmacêutica Farmácia do Povo, mantida pelo Governo do Piauí, proíbe médicos devidamente registrados no Conselho Regional de Medicina (CRM) de prescreverem medicamentos para o tratamento de doenças graves a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). A entrega de medicamentos foi negada sob a justificativa de que a prescrição só pode ser feita por médico com Registro de Qualificação de Especialista (RQE) na área de pneumologia, o que é falso.

O advogado Bruno Reis Figueiredo, da Associação Brasileira de Médicos com Expertise em Pós-Graduação (Abramepo), explica que isso viola a Constituição e a Lei Federal 3.268/1957, que estabelecem as diretrizes para o exercício legal da Medicina, além de pareceres do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do CRM do Piauí. “O médico graduado em instituição reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC) e devidamente registrado no CRM pode exercer a medicina em todas as especialidades. Além da lei federal, há pareceres do CFM (Parecer 06 e 09, de 2016) e do CRM atestando isso. Essa é uma medida completamente descabida”, afirma Figueiredo.

O Departamento Jurídico da entidade acionou o Governo do Piauí na Justiça por meio de uma Ação de Obrigação de Fazer, que tem como objetivo fazer com que a Farmácia do Povo cumpra a lei e entregue medicamentos aos pacientes do SUS.

O presidente da entidade, o médico Eduardo Costa Teixeira, sustenta que essa medida é mais um exemplo da perseguição contra os médicos pós-graduados. “A Abramepo foi criada justamente para atender os profissionais que têm sido cerceados no seu direito de trabalhar livremente. Esse cerceamento é incentivado há anos por entidades privadas para reservarem o mercado de especialidades a um grupo de profissionais que tem acesso a residência médica. É uma medida que interessa a uma pequena parcela e prejudica quem mais precisa de atendimento, como os pacientes do SUS e os que não podem pagar por consultas particulares ou planos de saúde”, comenta.

Diante da ilegalidade, a Abramepo realizou uma consulta perante o Conselho Regional de Medicina do Piauí, que informou, por meio do Parecer nº n° 17/2020, que não há necessidade de que o médico seja especialista em determinada área para poder atuar em demandas específicas. “Aqui não se trata somente de títulos, mas sim da vida de uma pessoa, que procura o SUS e mesmo assim fica impossibilitada de receber o tratamento daquele médico que estudou durante muitos anos e tem o seu exercício profissional cerceado”, diz trecho da ação.

A ação ajuizada pela entidade requer que o Governo respeite o direito dos médicos registrados no CRM de prescrever medicamentos e tratamentos necessários aos seus pacientes. “Não se trata somente de garantir o pleno exercício da Medicina, mas de respeitar o direito à Saúde de toda a população. Ao negar acesso a medicamentos para tratar doenças graves, o Estado coloca em risco a vida dos pacientes, que poderão sofrer consequências sérias diante do descaso do poder público”, reforça Teixeira.

Inconstitucional


O advogado da Abramepo reforça que a ação do Governo do Piauí fere frontalmente a Constituição. “Os artigos 6º e 196º da Constituição Federal estabelecem que a saúde é direito de todas as pessoas e um dever do Estado. Ao negar o acesso de pacientes a medicamentos, o Governo do Piauí comete uma ilegalidade”, completa Reis.

Quem ganha com a escassez de especialistas no Brasil?

Eduardo Costa Teixeira*

A defasagem entre o número de médicos formados e as vagas de residência médica – o caminho oficial para obter o Registro de Qualificação de Especialista (RQE), que confere o título de especialista no Brasil – cresce ano a ano. Em 2021, esse deficit era de 11.770 vagas e a previsão é de aumentar em 2023. Segundo o estudo Demografia Médica 2023, a minoria dos médicos residentes afirma ter intenção de trabalhar no SUS.

No prazo de um ano após a conclusão da Residência Médica, 24,6% dos médicos disseram que pretendem trabalhar, majoritariamente, no SUS. Quando questionados sobre expectativas de local de trabalho no prazo de cinco anos após a conclusão da residência, esse índice cai para 12,1%.

Com esses dados fica fácil entender por que faltam especialistas no SUS. Difícil é entender por que o Conselho Federal de Medicina (CFM) não age de forma mais incisiva para cobrar o aumento do número de vagas de residência; regulamentar a prova de títulos ou valorizar a pós-graduação, medidas que podem, efetivamente, ampliar o número de especialistas no Brasil e, portanto, o acesso das populações mais pobres ao atendimento médico especializado.

Para piorar esse cenário, uma resolução ilegal do CFM impede os médicos com especializações em cursos de pós-graduação lato sensu regulamentados pelo MEC de anunciarem suas especialidades. A campanha para cercear os direitos dos pós-graduados, reconhecidos por lei federal, pela Constituição e por diversas decisões na Justiça Federal, vem impedindo que esses profissionais participem de concursos públicos; se credenciem em planos de saúde; emitam laudos e, em casos extremos, chega a impedir que prescrevam exames e medicamentos a pacientes graves do SUS.

Repito: essa política, replicada nos Conselhos Regionais de Medicina, impede que médicos pós-graduados sejam credenciados nos planos de saúde e participem de concursos públicos. Trata-se, claramente, de uma reserva de mercado para que os médicos com RQE possam atender à parcela da população que pode pagar por consultas particulares ou convênios VIPs, cujos valores não estão ao alcance da maioria da população brasileira.

Com escassez de especialistas, o valor das consultas nas clínicas particulares fica mais alto. Nos convênios, a política de descredenciamento dos profissionais sem RQE reduz a rede credenciada e, como consequência, tende a aumentar o valor dos planos.

Ao mesmo tempo em que cerceia os direitos dos médicos pós-graduados, os conselhos fecham os olhos para um problema grave que ocorre nas unidades básicas de saúde e nos ambulatórios do SUS: a falta de especialistas, que leva a população mais pobre a esperar anos por consultas. Não se vê o mesmo empenho em fiscalizar as longas filas de espera por consultas e cirurgias, que se vê na fiscalização para punir administrativamente o pós-graduado que exibe sua especialidade na parede do consultório.

Importante ressaltar que a lei federal 3268/57 afirma claramente que o médico formado em uma instituição reconhecida pelo MEC e registrado no CRM de sua jurisdição está apto a exercer a profissão em qualquer área. Mais que isso, pareceres dos CRMs e do próprio CFM reconhecem que todo médico que atenda a essas condições pode atuar em qualquer especialidade médica, mesmo que não tenha RQE.

Se podem atender, se podem exercer a Medicina em qualquer uma de suas especialidades, qual interesse em vetar a divulgação dos cursos de pós-graduação lato sensu chancelados pelo MEC? A quem interessa restringir, ainda mais, o número de especialistas para a população brasileira? Já sabemos quem perde, mas quem ganha com uma medida dessas?