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Uso de silicone industrial é problema de saúde pública, diz cirurgião

Médico orienta sobre riscos e cuidados que a população deve ter ao fazer uma bioplastia

As chamadas bioplastias genéricas, que criminosamente usam silicone industrial líquido em procedimentos para aumentar o volume de glúteos, mamas e coxas, devem ser tratadas como problema de saúde pública no Brasil. O alerta é do cirurgião plástico e presidente da Associação Brasileira de Médicos com Expertise em Pós-Graduação (Abramepo), Eduardo Costa Teixeira.

O médico, que é professor titular da Escola de Medicina e Cirurgia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), estuda e trata sequelas decorrentes dos implantes ilegais de silicone industrial no Hospital Universitário Gaffrée Guinle (HUGG), no Rio de Janeiro. “O uso descontrolado dessa substância, que é proibida pela Anvisa e até considerada crime, está aumentando a procura por tratamento em consultórios médicos e nos serviços públicos e vem causando cada vez mais mortes e sequelas graves”, reforça o médico.

Segundo Teixeira, as intervenções ilegais vêm sendo feitas em clínicas clandestinas, salões de beleza, academias e até em quartos improvisados por pessoas que não são da área da saúde, sem qualquer tipo de treinamento. A prática é ilegal e configura crime contra a saúde pública. Quem aplica a substância pode responder pelos crimes de exercício ilegal da medicina, curandeirismo e lesão corporal.

Estudo de casos


O cirurgião estudou o atendimento a 68 pacientes que procuraram o hospital para tratar as sequelas de procedimentos ilegais. Em 43 casos, a infecção precisou ser tratada com cirurgias para drenagem do silicone. “Em 5 casos, foram necessárias intervenções mais amplas, com remoção de tecido. Uma paciente teve infecção no pós-operatório, que evoluiu para infecção generalizada, e precisou ser internada na UTI”, comenta.

O silicone industrial, que é indicado para limpeza de carros e impermeabilização de azulejos, causa danos extensos porque se espalha pelo corpo e é impossível de ser retirado completamente. “O produto provoca deformações, dores, infecção generalizada, embolia pulmonar e, muitas vezes, morte. Estamos falando de um produto potencialmente letal que vem sendo aplicado em espaços clandestinos de forma livre. O pior é que isso acontece sem que haja qualquer resistência por parte dos órgãos que deveriam fiscalizar e impedir essa prática”, comenta.

O uso de silicone líquido é feito para substituir erroneamente o PMMA (polimetilmetacrilato), produto autorizado pela Anvisa, desde que seja aplicado por profissionais médicos treinados. “O grande problema é que as chamadas ‘bombadeiras’ oferecem procedimentos que chegam a custar até 10 vezes menos que a bioplastia feita por profissionais de saúde em clínicas regularizadas e utilizando a matéria-prima adequada, que é o PMMA. Essa diferença no preço ocorre justamente porque o silicone é muito mais barato que o material seguro”, explica o cirurgião.

Problema recorrente


As complicações em pacientes que utilizam o silicone líquido industrial são constantemente divulgadas pela imprensa. O caso mais recente foi a morte da modelo e jornalista Lygia Fazio, de 40 anos. Desde o ano passado, ela tratava as sequelas de complicações que o uso de silicone líquido provocou no seu organismo. “É preciso que tanto o governo quanto entidades médicas fiscalizem com maior rigor essa prática. Precisamos de campanhas informativas para alertar as pessoas sobre o risco de usar o silicone líquido, orientando sobre as medidas de segurança para fazer esses tipos de tratamentos”, comenta o médico.

Cuidados


O cirurgião alerta que todos os produtos usados em procedimentos médicos e estéticos no Brasil devem ter o registro na Anvisa, que faz uma análise técnica de eficácia e segurança. “O paciente que quer fazer um procedimento desses deve procurar um médico capacitado, com referência e se certificar de que o material utilizado seja o PMMA. Muita gente pode dizer que usa o PMMA, mas utiliza o silicone líquido. O PMMA é leitoso, não é incolor. Outra dica é levar um acompanhante para se certificar do produto que está sendo usado e, principalmente, desconfiar de preços muitos mais baixos. A economia, neste caso, pode custar a vida”, reforça Teixeira.

A elitização das especialidades médicas e o apartheid da saúde no Brasil

O Brasil tem 546 mil médicos em atuação, número proporcionalmente grande, que representa 2,56 médicos para cada grupo de mil habitantes. O índice é praticamente igual aos dos Estados Unidos (2,6) e maior que o Japão (2,55). Ainda assim, um dos problemas mais graves enfrentados pelos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) é a falta de especialistas.

Nas regiões mais distantes das grandes metrópoles, a espera por uma consulta com uma especialidade pode durar vários anos. A situação assume contornos dramáticos que levam o poder público a pagar salários de até R$ 135 mil para tentar atrair profissionais para cidades da região Norte, para citar apenas um exemplo divulgado pela imprensa.

Dados da Demografia Médica 2023 confirmam esse drama: 56,1% dos médicos residentes estavam na região Sudeste, um terço deles (33,3%) em São Paulo. Enquanto isso, as regiões Centro-Oeste (7,5%) e Norte (3,6%) têm as menores proporções de residentes do Brasil. Juntos, os estados de Roraima e Amapá tinham, em 2021, apenas 100 residentes. A desigualdade na distribuição dessas vagas aprofunda o abismo social no Brasil.

Os grandes entraves ao aumento do número de especialistas no Brasil são a insuficiente quantidade de vagas de residência médica disponibilizadas; a má distribuição dessas vagas pelo Brasil e a falta de uma política do MEC para a pós-graduação na área médica.

O mesmo estudo mostrou que o número de graduados que iniciam a residência médica vem caindo ano a ano: entre 2018 e 2021 essa queda chegou a 14,8%. A defasagem entre formados e as vagas referentes às especialidades de acesso direto é ainda maior: em 2018 o deficit era de 3.866 e saltou para 11.770 em 2021, um aumento de 204%.

Enquanto isso acontece, uma norma do Conselho Federal de Medicina (CFM) impede milhares de médicos especializados em cursos de pós-graduação oferecidos por universidades federais e até por instituições médicas renomadas de divulgar suas especializações.

Segundo a Lei Federal 3.268, os médicos com diplomas e títulos registrados no MEC e com registro nos Conselhos Regionais de Medicina (CRM) estão habilitados a exercer a medicina em qualquer uma das suas especialidades. Mas uma resolução do CFM criou um modelo privado com poderes para definir os destinos das especialidades médicas.

Diferentemente de todas as demais profissões, inclusive da área de saúde, as pós-graduações credenciadas pelo MEC não conferem ao médico o título de especialista. Para apresentar a sua especialidade, o profissional precisa cursar a residência ou fazer algum dos cursos de pósgraduação credenciados por sociedades privadas de medicina vinculadas à Associação Médica Brasileira (AMB). Ou seja, não é o órgão máximo da Educação no Brasil quem diz quais cursos podem conferir o título de especialistas a médicos, mas uma entidade privada.

É preciso uma ação contundente do MEC para democratizar o acesso à especialização médica e tirar das mãos de entidades particulares o poder de definir quem pode ou não ser especialista. O órgão máximo deve criar uma comissão para estabelecer normas e critérios rigorosos para os cursos de formação de especialistas que são oferecidos no Brasil.

Enquanto isso não for feito, veremos esse abismo social aumentar ainda mais: de um lado, teremos milhões de brasileiros sem acesso a atendimentos em especialidades como psiquiatria, geriatria, neurologia, dentre outras, enquanto, do outro lado, entidades privadas elitizam ainda mais a medicina especializada e a restringem a uma parcela privilegiada que pode pagar caro por convênios e consultas particulares.

*Eduardo Costa Teixeira é professor titular da Escola de Medicina e Cirurgia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e presidente da Associação Brasileira de Médicos Com Expertise em Pós-Graduação (Abramepo)

Confira o material disponível no portal Estadão pelo pdf ou pelo link: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-elitizacao-das-especialidades-medicas-e-o-apartheid-da-saude-no-brasil/